Brevíssimo Ensaio sobre a Memória no Cinema
Por Gabriel Feijão Marinho
Brevíssimo Ensaio sobre a Memória no Cinema
por Gabriel Feijão Marinho
Lembrar é mais do que meramente um ato simbólico de construção sensorial criada pelo cérebro humano — é também um ato disruptivo de resistência, que nos faz recordar momentos, pessoas e objetos, e, a partir disso, compreender como chegamos até o tempo presente. Não se trata de algo unicamente bom ou, por outro lado, necessariamente ruim. É preciso entender que lembrar é um ato contraditório, pois muitas vezes consiste em um dispositivo para rememorar coisas que os seres humanos gostariam de ter esquecido: um trauma, uma vergonha que passou, uma piada que ninguém riu, um filme extremamente ruim.
No cinema, o ato de lembrar não consiste apenas em uma fórmula conteudista de retorno a algo que ocorreu em um tempo passado, mas em uma forma bem elaborada na mise-en-scène de cada filme para gerar no espectador sensações que fogem de uma representação simplista dos sentidos estruturantes de uma lembrança. Quando falo em cinema, refiro-me aos bons filmes; acredito que a análise cinematográfica deve pautar-se majoritariamente pelas obras que amamos e que consideramos o ápice dessa arte.
Dito isso, a memória como recurso pode ser vista de maneira magistral em Era uma Vez na América [Once Upon a Time in America, Estados Unidos/Itália, Sergio Leone, 1984], que trata, entre muitos outros aspectos, da memória e de como ela aflige a vida de alguém. Seja pelas lembranças de Noodles sobre a infância — que o diretor Sergio Leone filma com uma vivacidade angelical para representar os frutíferos bons e velhos tempos da malandragem infantil —, seja pelas recordações traumáticas, captadas como um verdadeiro filme de terror, revelando as pragas mundanas de policiais e criminosos como o monstro de Frankenstein [Estados Unidos, James Whale, 1931] ou o vampiro de Nosferatu [Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, Alemanha, F.W.Murnau, 1922].
Veja bem, não se trata simplesmente de uma articulação de câmera, mas de todo um aparato meticuloso de encenação que prevê uma construção semântica de planos cinematográficos tomados ora pela felicidade genuína, ora pelo assombramento terrível. Outro ponto crucial para a construção da memória nesse filme são os olhares: desde o olhar de Noodles por um buraco apertado para enxergar sua musa dançando; o olhar do personagem de James Woods para Noodles, em que o protagonista tenta buscar o último resquício daquela criança que outrora conheceu; o olhar assustado e de desprezo que Deborah lança contra Noodles enquanto é abusada por ele; até o olhar de negação e descontentamento do motorista de Noodles ao presenciar o abuso. Todos esses olhares corroboram com um recurso tão simples e potente da memória: a capacidade humana de construir imagens — neste caso, de reconstruir imagens de tempos passados, seja por nosso poder criativo, seja por nossa fraqueza de querer permanecer no passado para mudar algo ou pelo desejo de ficar para sempre em um momento.
Outro filme que consegue explorar, por outros caminhos, o uso da memória para a construção cinematográfica é Buffalo 66 [ Estados Unidos, Vincent Gallo, 1998]. A obra se ancora nas lembranças traumáticas de Billy Brown para demonstrar como elas o tornaram um ser humano desprezível, melancólico e quase incapaz de se comunicar. Isso é feito, majoritariamente, por meio dos flashbacks — recurso narrativo simples que consiste em mostrar uma cena que ocorreu em um período anterior ao presente da história. Embora essa técnica seja amplamente utilizada de maneira banal em diversas obras, em Buffalo 66 Vincent Gallo a transforma em um mergulho metafórico nas mais profundas lembranças de Billy.
Sejam as partidas do Buffalo Bills em que a mãe vocifera seu amor pelo time e ignora o filho, sejam os momentos traumáticos de violência com o pai, ou ainda os episódios ao lado de um amigo na casa de apostas — todo esse emaranhado audiovisual cria uma mise-en-scène que evoca um tom quase onírico para a trama. Não no sentido de um sonho, mas de um pesadelo provocado pelos atos e experiências da vida de Billy. Mesmo em momentos que ocorrem apenas na mente do personagem, como o assassinato do jogador de futebol americano em um prostíbulo, é a memória que se impõe como força narrativa. A lembrança de que uma mulher que o ama o espera em um quarto apertado de hotel faz com que ele desista de seu plano vingativo e escolha o caminho do amor.
A memória segue como um instrumento de composição cinematográfica capaz de construir as mais belas ou mais devastadoras histórias. O ponto crucial desse elemento não está apenas em como ele é utilizado, mas naquilo para o qual é utilizado.