CINEMA, O IDEAL
Inconscientemente, o espectador de cinema de hoje está testemunhando o nascimento real de formas verdadeiramente individuais de cinema. A preocupação com o Cinema como um ideal consciente, como a forma inspiradora que cria ideias e dá direção à sociedade ao eliminar o caminho deturpado do pensamento condicionado, está ocorrendo nos Estados Unidos. Os jovens cineastas da América que foram nutridos pelo Cinema, estão reavaliando as multiformas dessa nobre arte. Não o Cinema que trata de material documental, educacional ou de entretenimento, mas o Cinema puro, que é o produto direto do espírito do cineasta; a poesia que ele guarda como sua única alma.
O prazer básico da vida é o voo da imaginação. Mas o voo não deve ser como o de Ícaro. Nem muito perto, nem muito longe do sol. Uma certa distância deve ser mantida consistentemente entre o cineasta e a grande força que molda mentes, corpos e culturas em direção à paz ou à guerra.
Os guardiões délficos do espírito poético do Cinema têm sido poucos. Entre eles, devem ser nomeados: Josef von Sternberg (Salvation Hunters, The Sea Gull, The Devil is a Woman); Erich von Stroheim (Greed); Genina (Prix de beauté); Jean Cocteau (Orfeu [Orphée, França, 1950)]; Robert Bresson (As Damas do Bois de Bologne [Les Dames du Bois de Boulogne, França, 1945]); Carl Theodor Dreyer (O Vampiro [Vampyr: The Strange Adventure of David Gray, Alemanha/França, 1932); Leni Riefenstahl (Olímpiadas e Mocidade Olímpica [Olympia 1. Teil - Fest der Völker, Olympia 2. Teil - Fest der Schönheit; Alemanha, 1938); Sergei Mikhailovich Eisenstein (Ivan o Terrível [Ivan Grozniy, União Soviética, 1944/1958]); Charles Chaplin (Luzes da Ribalta [Limelight, EUA, 1952)]; Nazimova (Salomé [idem, EUA, 1923]); Roberto Rossellini (O Amor [L'Amore, Itália, 1948]); Francisco, Arauto de Deus [Francesco, Giullare Di Dio,Itália, 1950]); e as obras de Dimitri Kirsanoff. Entre todos esses cineastas, há apenas um que apresentou em suas obras aquele elemento que é um sentimento, não uma imitação — por exemplo, Moulin Rouge [idem, Reino Unido, E.A. Dupont, 1928], …E o Vento Levou [Gone with the Wind, EUA, George Cukor, 1939], Sétimo Céu [Seventh Heaven, EUA, Frank Borzage, 1927] Aurora [Sunrise, EUA, F.W. Murnau, 1927] — de todas as artes combinadas em um Cinema puro: a Poesia. Esse cineasta é Dimitri Kirsanoff.
Mais do que qualquer outra arte, o Cinema está envolvido com a eternidade e traz serenidade ao espectador. De fato, o que muitas vezes é chamado de moderno nas artes do Teatro, da Pintura, da Escultura e da Escrita não é mais do que esse símbolo do tempo no Cinema, que elas tentaram desafiar, sem sucesso, ao longo dos séculos. No Cinema, o fluxo do tempo, a implacabilidade do espaço projetado em um espaço limitado, combinam-se para reconhecer a eternidade que cria serenidade. Por essa razão, o Cinema anuncia a nova sociedade.
Dentro de um intervalo de apenas um minuto (lembre-se dos primeiros filmes coloridos à mão da Pathé), até durações tão longas quanto nove horas (o novo trabalho de Fellini, A Doce Vida [La Dolce Vita, Itália, 1960] faz parte de um projeto de nove horas), o Cinema ilustra, destrói, inspira e, em alguns poucos casos, enobrece o espectador. Assim, o Cinema é o representante absoluto do Caos, que, através da intervenção sublime do cineasta, torna-se a iniciativa do futuro. Cada fotograma, como um corpúsculo precioso, permite ao espectador adentrar além das dimensões limitadas de sua vida cotidiana e retornar revigorado e inspirado da câmara ctônica onde esteve sentado, na escuridão inspiradora diante da tela com contas de vidro.
No filme americano filmado em Eastmancolor Serenity [Grécia, Gregory J. Markopoulos, 1961], baseado no romance de Ilias Venezis, que foi feito na Grécia, minha principal preocupação era com os elementos universais do romance de Venezis. O grande desastre de 1922, quando um milhão de pessoas foram trocadas entre os governos grego e turco, foi apenas o ponto demoníaco. A pesquisa provou para mim que ambos os governos eram culpados. Em vista de seus erros, procurei estabelecer, por meio da minha própria doutrina estética pessoal, a ideia de serenidade em Serenity. Mesmo em meio aos horrores boschianos de levar uma obra cinematográfica à sua conclusão, foi necessário travar uma guerra obstinada para preservar qualquer poesia em meu trabalho. Felizmente, houve algumas vitórias decisivas.
Logo após meu retorno de Roma aos Estados Unidos — eu havia estado editando a cópia de Serenity —, meus advogados foram obrigados a convocar uma conferência entre os financiadores, seu associado e eu. Entre os assuntos importantes discutidos estava minha proposta de usar quatro idiomas quase simultaneamente e de forma consistente ao longo do filme, para complementar uma concepção visual extremamente pictórica. Todos os esforços dos financiadores e de seu associado para que eu desistisse e abandonasse minha proposta dos quatro idiomas foram em vão. Embora a batalha tenha sido vencida, isso significou que eu mesmo tive que gravar o material e pagar pelo equipamento necessário para as sessões de gravação.
Inglês, grego, alemão e russo são os idiomas utilizados. Obviamente, esse primeiro esforço teve que ser limitado em escopo. Na primeira prévia com os quatro idiomas, experimentei a canção universal de línguas diversas unidas entre si. Concomitantemente, elas mantinham sua própria independência da maneira mais harmoniosa e inata.
O Cinema como ideal é o desafio do cineasta de hoje e de amanhã. O quão corajosamente capazes eles serão de enfrentar esse desafio ainda permanece desconhecido. Só se pode esperar que alguns deles provem ser filhos do agitador da terra, Poseidon.
30 de agosto de 1960
Cidade de Nova York
Gregory J. Markopoulos
(Gregory J. Markopoulos. “Cinema, the Ideal”. In.: Film as Film: The Writings of Gregory J. Markopoulos. Londres: Visible Press, 2014. Traduzido por Lain Hatsvne)