Da Instrumentalização Reacionária da Arte pela Esquerda ou Crítica da Arte como Sub-Coisa
por Rodrigo Ferreira
Da instrumentalização reacionária da arte pela esquerda ou crítica da arte como sub-coisa
Rodrigo Ferreira
Existe uma percepção, no que se refere ao cinema soviético, que se apropria de um discurso de “liberdade”, mas que não é outra coisa senão a mais vil instrumentalização da arte. Se Lênin discorre “sobre a violação da unidade encoberta por gritos de unidade”, a percepção a que me refiro é uma verdadeira instrumentalização encoberta por gritos contrários à instrumentalização. Veja, há os trotskistas, krushovistas, liberais, social democratas, leftcoms etc, que defendem a posição de que o cinema pós Stalin, ou melhor, o cinema da destalinização, seja o “cinema livre” que acabou com a produção “burocrática” do cinema “stalinista” (i.e. realismo socialista). Não percebem, porém, que não há nada mais burocrático que o cinema krushovista, que se apropria do que há de pior no cinema acadêmico europeu, nesse romantismo vulgar proposto pela política de destalinização. Ou não percebem, ou são oportunistas. Diferente disso, apenas se desconhecerem de cinema, o que me leva ao ponto central desse texto. Para finalizar essa questão, há de se pontuar: existe uma má compreensão do termo “burocratismo”. Associa-se burocratismo ao truncado, ao centralizado. Logo, o realismo socialista é a arte burocrática, pois se fecha em seu formato que é bruto, que pouco se permite inspirar por outras convenções cinematográficas. Veja, o que há de livre num cinema que abandona tudo que vinha sendo construído enquanto linguagem soviética de cinema e se escora num vulgar academicismo europeu? É a máxima de que a ideologia dominante, sendo a ideologia da classe dominante, é assumida como senso comum. Convenção de fazer cinematográfico socialista é burocracia, convenção europeia é liberdade... Sem perceber (há os que percebem, mas são oportunistas) estão assumindo uma posição política que instrumentaliza a arte, gritando contra uma suposta instrumentalização stalinista.
Dito isto, vamos à segunda questão a ser pontuada. Ao comentar do assunto, um colega observou que a burocracia do cinema anti-stalinista é fruto da burocracia do cinema stalinista, onde inclusive alguns dos grandes e notáveis cineastas de um momento são reaproveitados no outro (i.e. Kalatozov). Veja, se a burocracia da arte anti-stalinista é uma reação ao realismo socialista (assumiremos que esse também é burocrático), ou melhor, que é fruto direto deste, chegaremos a uma reflexão que assumirá que o stalinismo, caso burocrático, é fruto de uma burocracia anterior (do bolchevismo, do marxismo-leninismo), que por sua vez é fruto da burocracia capitalista, da necessidade de reação ao capitalismo e de transformar a realidade. No final das contas, o debate sobre um suposto burocratismo fica esvaziado. Se toda burocracia é produto da transformação dialética de uma burocracia outra (aufheben; para “elevar à condição de”, nega-se a matéria, mas também se conserva algo fundamental dela), superemos o debate (político e artístico) sob esses termos e avancemos para uma análise mais profunda, menos maniqueista, e que nossa opinião sobre arte não sirva para justificar uma posição política. O mais vil dos oportunistas é o que aponta uma série de adjetivações ao stalinismo, mas está enclausurado ele mesmo. Assuma suas contradições e debata com maturidade. Ao tema central do texto:
Com o evento Ainda Estou Aqui [Brasil, Walter Salles, 2024], o maior problema da esquerda no que se refere à arte foi deflagrado: uma instrumentalização anti-crítica e o tratamento da arte como sub-coisa.
De fato, existe um fenômeno muito peculiar nesse evento, que reúne num grande grupo as mais infantis posições do progressista médio:
1 – Tratar cinema como diva pop ou como time de futebol.
2 – Instrumentalizar o filme. Assumir uma posição anti-crítica: afinal, o filme fala sobre um tema importante e é baseado em fatos reais, logo é politicamente interessante.
3 – Falastronismo: assumir uma posição política no debate público, mas ser alérgico à atuação política.
4 – Arte como sub-coisa: opinar sobre cinema aos montes não tendo lido uma vírgula sobre o assunto, como se o cinema não fosse digno de seu tempo.
NEM POLÍTICA, NEM ARTE: PERFORMANCE VAZIA
A anomalia infantiloide do progressismo nos entrega caricaturas que só poderiam vir do progressismo. Se o esquerdismo é a doença infantil do comunismo, o progressismo é a doença infantil da esquerda. Ora, esses pecam na política: são os bastiões da luta pela memória, defendem o filme incriticável (que só o é devido ao caráter político)! Mas vão às ruas? Cobram pela volta da comissão da verdade? No final das contas, a atividade política real não engaja. É preciso conservar uma imagética progressista, que se enclausura em seus próprios espaços e se furta da crítica. Quando erram na política, erram em relação à arte: o filme é blindado de críticas, pois toca num tema pertinente. Sabem esses algo sobre linguagem de cinema? Uma esquerda que trata arte como sub-coisa é uma esquerda que utiliza arte apenas para reiterar uma posição política. Nenhum progressista médio sai dando pitaco sobre qualquer coisa que exija conhecimento científico, caso não tenha estudo na área. Sobre arte, nunca leram uma vírgula, mas falam aos montes. O progressista médio vai falar sobre arte aos montes, sem embasamento, pois ela é sub-coisa, não é digna de seu tempo. Serve apenas para contribuir à imagética performática de esquerdista que está tentando construir. Sobre cinema político, desconhecem Eisenstein e Resnais. Sobre cinema político brasileiro, desconhecem Glauber, Sganzerla e Bressane. Afinal, nada disso engaja. Glauber é cinema “cult”, pra quem quer “pagar de diferentão”. Salles, o bilionário progressista-culposo, é cinema importante! Erram na política ao passo que erram no cinema. Defendem uma ideia abstrata de brasilidade, já que desconhecem o cinema brasileiro pré-retomada, ou seja, só viram filmes com linguagem hollywoodiana. Defendem uma posição anti-crítica, afinal “devemos valorizar o cinema nacional”, ou melhor, a cultura nacional (como diria Godard, cultura como regra e arte como exceção)! Agora, pergunte quantos filmes brasileiros já viram e quantos desses são anteriores aos anos 2000... não terá surpresa, mas vai confirmar o caráter performático desses “defensores” do “cinema brasileiro”. Uma ideia abstrata de cultura, de Brasil, de cinema brasileiro, de brasilidade, de cinema. Resultado: performance romântica de defensor da arte brasileira.
Ao apontar essas contradições, recebi uma série de ataques destes mesmos anti-arte (anti-crítica é anti-arte) que insinuavam que minha crítica ia ao encontro de uma ideia de “massa alienada”, coisas como “dona Maria hipotética” e etc. Senhores oportunistas, essas categorias de palavras foram proferidas por vocês. Minha crítica vai à esquerda, vai aos “esclarecidos” da pequena burguesia, vai àqueles que enchem o peito para ir ao debate público sobre geopolítica, sobre economia, sobre conjuntura e acham que seu conhecimento em política (quando há) legitima seu falastronismo em arte, sem a necessidade de estudar arte. Isso é o mais puro reacionarismo! Quando evocam a retórica da “massa alienada” e que eu deveria adotar um tom pedagógico, além de se furtarem da crítica e de maneira oportunista me imputar algo que desvia do que é central da crítica, deflagram o maior de seu elitismo. Ora, o filme não pode ser criticado por ser de massa? Primeiro que não critiquei o filme pelo caráter de massa. Segundo, sob essa lógica, então o cinema da Marvel é o ápice da cultura popular? Afinal, se o que importa é o caráter de massas, nos rendamos à linguagem do enlatado hollywoodiano! Ao passo que caem nessa contradição, seu caráter elitista é deflagrado quando assumem que existe uma massa que vai ao cinema ver Ainda Estou Aqui [Brasil, Walter Salles, 2024] que é incapaz de entender Glauber. Vejamos a opinião do próprio Glauber sobre:
“Hartog: Hoje, o cinema se tornou uma forma de arte para uma minoria. Isso te incomoda ou não? Você acha que esse é o caso?
Straub: Não sei o que é uma minoria. De qualquer forma, Lenin respondeu a essa pergunta dizendo que a minoria de hoje será a maioria de amanhã. Então não faz sentido. Mas não podemos saber... Se déssemos as mesmas chances, em termos de distribuição e publicidade, aos filmes acusados de serem feitos para uma minoria como aqueles chamados de "comerciais", a questão não se colocaria. Mas não é esse o caso.
Rocha: Sobre essa questão do público minoritário: há muito paternalismo em relação ao público. Por exemplo, há intelectuais de esquerda, escritores e não diretores de cinema, que afirmam fazer filmes muito difíceis para o público. Esse é um ponto de vista muito paternalista. A ideia deles é que somente a burguesia é sensível ou inteligente o suficiente para entender um filme. Existe todo um mecanismo de distribuição que impôs um certo tipo de produto cinematográfico ao público e o corrompeu completamente. O que descobri – tenho que dizer isso de novo porque as pessoas não percebem – é que… A primeira coisa é que os filmes falam uma linguagem muito específica. O público é colonizado por uma linguagem imposta por Hollywood, que infelizmente é a mesma que o regime soviético quer impor. O público não tem a oportunidade de escolher porque hoje as estruturas de distribuição nos países capitalistas e socialistas lhe impõem o mesmo tipo de produto. Os críticos apoiam isso quando declaram que alguns filmes são incompreensíveis.
Straub: Críticos que usam essa linguagem são prostitutas que trabalham para seus cafetões, só isso.
Rocha: Sim, porque nesse nível há uma colaboração entre críticos que dizem não entender e intelectuais paternalistas de esquerda: eles designam os cineastas como fora da lei. Mas, fundamentalmente, sinto que os cineastas que trabalham fora da indústria são muito mais democráticos, muito mais revolucionários e respeitam mais o público. Eu mesmo tento fazer filmes difíceis – não acho que estou sendo paternalista com o público. Acredito que camponeses, trabalhadores, estudantes, até mesmo nobres – qualquer um é capaz de entender um filme… Ler um filme é um processo tão complexo. Alguns filmes, aqueles com uma estrutura "aberta" ou dialética, criaram uma linguagem que está em oposição direta à linguagem da colonização. Nesta fase, certamente não podemos ser paternalistas com o público. Por exemplo, outro dia, na televisão, intelectuais estavam explicando que Pasolini faz filmes muito difíceis para o público em geral. E então os trabalhadores milaneses falaram, e suas críticas foram muito mais sutis do que aquelas desses intelectuais oficiais. E mesmo quando diziam coisas como: "Não fiquei emocionado com a atuação de Gerson ou Maria Callas"... Dá para ver que essas pessoas sabem falar. Tomemos como exemplo os filmes de Jean-Marie – A Crônica de Anna Magdalena Bach (1967). Este é um filme que deveria ter sido exibido em todas as escolas de música, em todos os canais de televisão. Mas isso não foi mais possível quando os críticos viram: "É difícil. "Os distribuidores não lidarão mais com filmes que são mais acessíveis ao público. Temos que lutar contra essa ditadura absoluta dos distribuidores.
Jancsó: É a ditadura dos pequenos idiotas , da pequena burguesia em todo o mundo. É uma ditadura bem organizada... E que deveríamos ter destruído, simplesmente destruído, há cinquenta anos... Nunca nos será permitido oferecer nada ao público.
Straub: Não há nada mais internacional do que um bando de cafetões. Tudo isso para dizer que pedimos as mesmas oportunidades para nossos filmes que para os outros. Nada mais. Se as pessoas tivessem a oportunidade de escolher entre um filme do Rocha e um filme de outra pessoa, da indústria, se elas realmente tivessem a oportunidade de escolher, ou seja, se o filme do Rocha tivesse a mesma publicidade e fosse exibido em cinemas acessíveis, então quem sabe o que aconteceria? Não sabemos nada sobre isso. Porque nunca tentamos o experimento”.[1]
Em tempo, não sou da posição de que o filme tem importância política nula. Meu problema é exclusivamente com aqueles que são de uma esquerda autodeclarada, que vai ao debate público sobre política e instrumentaliza a arte para reiterar sua posição política, ao passo que toma um tom anti-crítica, pois se é cinema nacional, é importante! Tratar o cinema brasileiro como incriticável apenas pelo fato de ser nacional é tratar cinema brasileiro como menor, como “café com leite”, além de revelar um profundo desconhecimento sobre linguagem brasileira de cinema. Há filmes feitos em solo nacional por cineastas brasileiros, mas são hollywoodianos. Glauber filmou “Der Leone Have Sept Cabeças” (1970) no Congo e Bressane filmou “Memórias de um Estrangulador de Loiras” (1971) em Londres, mas são a síntese da máxima que uma linguagem brasileira de cinema é, acima de tudo, uma busca.
[1] Simon Hartog. “Conversation entre Pierre Clémenti, Miklos Jancsó, Glauber Rocha et Jean-Marie Straub”. Dérives autor du cinema. Fevereiro de 1970.