Fragmentos para o Desenvolvimento de uma Ideia sobre a Montagem
por Rodrigo Ferreira
Fragmentos para o desenvolvimento de uma ideia sobre a montagem.
Rodrigo Ferreira
1- O encouraçado Potemkin [Броненосец Потёмкин, União Soviética, Sergei Eisenstein, 1925]
“Na era da câmera móvel e da decupagem, pode parecer que a parte da montagem é demasiado acessória. No entanto, autores modernos como Orson Welles e Alain Resnais dão a ela um lugar essencial. Resnais: “A verdade do olhar é a montagem, não a panorâmica. O olho percorre de um ponto a outro sem ver entre os dois”. Orson Welles: “Ninguém pode se dizer metteur en scène se não montar os próprios filmes”. O privilégio dado à montagem não nos autorizaria, portanto, a opor arbitrariamente ao cinema clássico o cinema moderno, que o ignoraria ou ao menos o negligenciaria. Não, tudo depende do significado dado ao ato de montar um filme. Se nos limitarmos a dá-lo um significado lógico, a montagem perde sua importância. Mas se dermos um sentido estético tão complexo quanto o que Eisenstein lhe atribui — ela se torna a essência própria do cinema.”[1]
Ora, se "dois pedaços de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposição" (Eisenstein, "O sentido do filme"), a montagem se deflagra como o aspecto dialético da vida no cinema; é o anseio da totalidade dialética de interpenetrar o mundo fílmico específico, bem como o mundo do cinema num sentido lato. Mais profundamente, o cinema é, em si, uma arte de justaposição de fatores: adiciona-se uma farsa à realidade, criando uma outra verdade — verdadeira dentro de si... A montagem eisensteiniana é nada menos que a compreensão do próprio cinema e o fazer de sua substância existencial o pressuposto teórico de uma técnica (a montagem, a justaposição de planos), afinal, a justaposição de dois pedaços é, acima de tudo, uma qualidade terceira — não tão somente uma soma mecânica. A soma de dois fatores quantitativos (plano), transformando-se em qualidade (o mundo do filme em si, surgido da justaposição), em última instância, é a soma de fatores que já foram qualitativamente transformados por fatores quantitativos: realidade (do mundo material, da vida, do que está em frente à câmera) e farsa (da câmera, do enquadramento, da escolha autoral do que mostrar, do que filmar), que permitem a passagem qualitativa dessa relação ao filme (plano), que coloca-se como aspecto quantitativo - para aí ser montado em justaposição a outro, e revelar a transformação dialética dessas relações. Nega-se, nega-se a negação, interpenetram-se os contrários, transforma-se a realidade. Eis aí o cinema, eis aí Eisenstein.
Aqui - como deveria pressupor o fazer de qualquer diretor que se preze - a práxis técnica eisensteniana é refletida na mise-en-scène, bem como na narrativa do filme. Apresenta-se a questão da carne; da problemática ao burburinho, do burburinho à negação de comer; da negação à situação iminente de fuzilamento; da situação à agitação; da agitação ao levante. A interpenetração de valores quantitativos contrários transforma a realidade fílmica, que por sua vez é filmada (prática) sob a mesma base teórica. Reside aí a práxis eisensteniana. Mais à frente, a morte do companheiro percorre Odessa como a própria transformação dialética da vida. E surgem mais operários, que circulam e dão caráter de movimento-transformação à cidade e à encenação desta. Da morte à circulação da notícia, daí a ida dos operários até o corpo; do corpo à consciência, da consciência ao burburinho; do burburinho ao linchamento da figura burguesa antissemita, daí à agitação revoltosa. Os cossacos negam tal princípio de revolta, daí o massacre. Em todo momento o filme constrói dialeticamente seu mundo, apresentando fatores que passam de quantidade à qualidade e vice-versa; apresentando contrários que se interpenetram e transformam dialeticamente a realidade posta. Mais além, a dramaticidade da tensão na quinta parte é brilhantemente construída pela forma que se monta cada plano da movimentação dos marinheiros, de forma que quanto mais avança o tempo, mais rápido ficam os movimentos, mais rapidamente operam-se as maquinarias, criando um ambiente de catástrofe iminente. O ápice da tensão é quando se finda a velocidade e deflagra-se o esperar. Com algo como "eles não vão atacar?", mostram-se finalmente os marinheiros sublevados nas outras embarcações. É a potência dos marinheiros do Potemkin que inspira, que vai do quantitativo à radical transformação qualitativa da situação dos marinheiros em todo aquele território geográfico. Sabemos, no entanto, que tal transformação qualitativa revela-se tão somente mais um fator quantitativo na movimentação dialética de transformação qualitativamente radical daquela sociedade: a revolução, a "única grande guerra justa e legítima, a guerra dos oprimidos contra os opressores".
2- Hiroshima, Meu Amor [Hiroshimna, mon amour, França, Alain Resnais, 1959]
“A invenção do sonoro colocou o cinema perante dificuldades não menos reveladoras. Sabemos que artistas como Chaplin tiveram uma atitude violentamente negativa face ao cinema sonoro. Em Luzes da Cidade, Chaplin, para “vencer” o som, faz passar com uma velocidade anormal o discurso do orador que inaugura um monumento à Prosperidade, sujeitando o timbre da palavra não ao automatismo do objeto reproduzido, mas ao seu projeto de artista (a palavra reduz-se assim a uma chilreada). Em Tempos Modernos, ele interpreta uma canção numa língua inventada «que não é uma língua»: é uma mistura de palavras inglesas, alemãs, francesas, italianas e «yiddish». Já em 1928, os cineastas soviéticos Eisenstein, Alexandrov e Pudovkin tinham proposto um programa mais bem fundamentado. Defendiam a tese de que a associação das imagens visuais e auditivas devia ser motivada artisticamente, e não automática, afirmando que era o desfasamento entre ambas que punha a nu essa motivação. O caminho indicado pelos cineastas soviéticos revelou-se muito importante para o estabelecimento das relações não só entre a imagem e o som, mas também entre a fotografia e a palavra. Quando Wajda, em Cinzas e Diamantes, transmite aos espectadores as palavras do discurso do orador, a câmara já deixou a sala do banquete e no «écran» aparecem os lavabos onde uma velha espera a chegada dos primeiros convivas já um pouco «tocados». Em Hiroshima, meu Amor, a heroína francesa conta ao seu amante japonês os seus longos dias de solidão num subterrâneo onde os pais a tinham escondido para a afastarem da cólera dos seus concidadãos, que não lhe perdoavam ter amado um soldado alemão. Só o gato vinha até ao sombrio subterrâneo. No momento em que ela pronuncia estas palavras, o gato não aparece no «écran». Os seus olhos brilharão mais tarde, na escuridão, quando a narrativa da heroína estiver muito mais avançada. Aqui, a técnica deu a possibilidade de obter uma perfeita sincronização entre o som e a imagem e proporcionou à arte a faculdade de adoptar ou de romper esta sincronização, isto é, de a tornar portadora de informação. Não se trata, de maneira nenhuma, da necessidade de distorcer as formas naturais do objeto (a deformação permanente reflete em geral a imaturidade de um meio artístico), mas da possibilidade de as deformar; deformar ou não deformar é assim, sempre, uma escolha artística. Na realidade, toda a história do cinema, enquanto arte, é uma cadeia de descobertas que visam expulsar o automatismo, de todos os aspectos susceptíveis de um tratamento artístico. O cinema deixou de ser fotografia em movimento quando fez dela um meio ativo de conhecer a realidade. O mundo que o cinema reproduz é simultaneamente o próprio objeto e um modelo desse objeto.”[2]
“Sim. A montagem, para Eisenstein, como para Resnais, consiste em reencontrar a unidade a partir da fragmentação mas sem esconder a fragmentação. Pelo contrário, acentuando-a, acentuando a independência do plano. É um movimento duplo, que acentua a autonomia do plano e, ao mesmo tempo, procura no interior deste uma força que faça com que ele possa entrar em relação com uma ou várias outras forças, e acabar assim por formar um unidade. Mas atenção: esta unidade já não é a da sequência clássica. É uma unidade de contrastes, uma unidade dialética, diriam Hegel e Domarchi (risos).”[3]
Veja, em tempos de debates sobre cinema político em nossas terras, nada proporciona um cinema militante que não seja um cinema militante em sua forma. A deflagração Eisensteinsiana-resnaisiana da fragmentação que compõe a unidade é, acima de tudo, a dialética em si, a deflagração nua e militante da dialética. Acentuar a autonomia do plano é perceber que não há todo sem a interpenetração de cada aspecto unitário, bem como, consequentemente, o todo é a manutenção de algo essencial de cada parte interpenetrante que, porém, não é isso nem aquilo por si só, é o todo transformado, portanto.
3- Contos da Lua Vaga [Ugetsu, Japão, Kenji Mizoguchi, 1953]
“A mise-en-scène é como a filosofia moderna, digamos Husserl e Merleau Ponty. Não existem as palavras dum lado e o pensamento do outro. O pensamento e, em seguida, as palavras. A linguagem não é qualquer coisa em si, não é uma simples tradução. Com a mise-en-scène acontece o mesmo. Quando digo que a mise-en-scène não é uma linguagem quero dizer que é, ao mesmo tempo, um pensamento. Ela é a vida e a reflexão sobre a vida. É por isso que, nos meus filmes, ponho os personagens a falar de tudo.”
A vida é — ou, para alguns, está. A reflexão sobre a vida, consequentemente, é uma reflexão sob a vida. Uma reflexão sobre o que há, sob o que há. A mente pensa onde os pés pisam. Nesse sentido, a mise-en-scène — sendo ela a vida e a reflexão, que só o é sob as condições da vida — carrega consigo uma práxis que é, acima de tudo, dialética. Godard entendeu, e assim aplicou na sua obra. Ora, se é uma práxis, é carregada de aplicação prática a partir da compreensão da ideia. Mizoguchi, o mesmo. Nega-se o ócio, aplica-se trabalho sensível sob a matéria, negando-a, ao passo que, tal negócio é motivado por uma negação das condições econômicas de Genjurô e sua família. Nega-se a matéria, mantem-se algo fundamental dela, transforma-se; eleva-se à condição de cerâmica. A guerra, no entanto, atua como negação do negócio (negação do ócio), bem como nega o anseio estrutural-familiar de Miyagi. Daí, o movimento. Ora, se residia movimento na aplicação do trabalho - e Mizoguchi da ao movimento-trabalho destaque cênico imprescindível - movimentam-se as pessoas fugindo da guerra. Daí, o fluxo das águas. Sabemos, no entanto, que nem homem nem águas serão os mesmos quando encontrarem-se novamente após seu desencontro, como prematuramente contribuiu Heráclito, numa sensibilidade dialética antes mesmo que o termo chegasse ao mundo. A grande questão é, porém, quando se revela que o movimento dialético transforma a partir de uma negação do que está posto, mantendo-se algo fundamental para deflagrar o novo (produto, conjuntura...), Mizoguchi dá à encenação, e principalmente, aos espaços (e a movimentação nestes), caráter de movimento de uma sensibilidade tão única, que se atravessa do realismo para o onírico/irreal de uma forma que dá ao próprio movimento dialético das coisas papel crucial na narrativa. E como se não bastasse, no final a conjuntura está transformada: 1) Há a casa, os espaços comuns do cotidiano dos personagens, mas estão transformados pela guerra. 2) Há trabalho, transformado pela perda (Genjurô gira sozinho o seu aparelho de cerâmica). 3) Há família, não como foi outrora. Inevitável, pois! Não há, naquela estrutura social-familiar-coletiva, o próprio coletivo sem que haja o trabalho e o espaço onde o trabalho é feito. Portanto, se há realidade transformada, há algo fundamental da realidade anteriormente posta, que foi negada para que a transformação ocorresse.
[1] Jean Domarchi. “Les secrets d’Eisenstein: II – La théorie et la pratique”. Cahiers du Cinéma. N. 97, Julho de 1959, pp. 24-32
[2] Yuri Lotman. “Estética e Semiótica do Cinema”. Lisboa: Editora Estampa, 1978
[3] Jacques Rivette. “Hiroshima Notre Amour”. Cahiers du Cinema. n. 97, julho de 1959, pp. 1-19