Princípios Mac-Mahonistas
1990
Janeiro
CinémAction publicou este mês um dossiê, “O amor pelo cinema americano”[1], dirigido por Francis Bordat, suficientemente rico para fazer papel de testemunho – talvez – último. Jogando com a energia do desespero “mais perto de você, minha Hollywood”, aqui está a orquestra de toda uma cultura cinefílica que está fundada sobre a paixão, cultura não a muito tempo florescente e que afunda, após ter atingido a falsa modernidade de uma ideologia político-semiológica, capaz – disse Claude Beylie – de falar de tudo exceto cinema, modernidade regressiva das Cahiers[2] que se tornaram tão estúpidos, se tornaram pobres, por acreditarem que são mais inteligentes. Que, neste dossiê brilhante, Tavernier[3] seja meu vizinho, que Ciment[4] não esteja distante, me reconforta um pouco. É melhor nos afogarmos juntos, é menos triste.
Então, foi para mim a ocasião de anunciar em duas páginas os “Princípios do Mac-Mahon”. Me parece que estou colocando algumas ideias que visam clarificar um debate sempre aberto, se tenho de julgar por número de posições cujo referente, nomeado ou não, não é outro que nosso turbulento elefante na loja de porcelanas[5] da crítica. (Eu não estou longe de pensar que, ao longo dos anos por vir, o animal pesará até um pouco mais.) Ideias bastante simples:
A) Quer ela queira ou não, quer ela saiba ou não, nenhum empreendimento crítico escapa à subjetividade estética, da ordem afetiva e não racional. A neutralidade eclética, a objetividade científica em matéria de reflexão sobre a arte são enganos. É conveniente que a crítica assuma sua subjetividade como a física inclui a incidência do observador e de suas ferramentas como parâmetro do objeto observado.
B) O mac-mahonismo rejeita no campo da apreciação estética toda interferência ideológica e, a fortiori, política, que, contrariamente às motivações do julgamento estético, são racionalmente identificáveis. O que não significa de forma alguma que devemos, em um cenário, por exemplo, excluir a política, dimensão humana como as demais. Isso significa que não negamos o talento de um cineasta porque ele é de esquerda ou de direita, ou porque ele aprova ou não a guerra do Vietnã.
C) A invenção do cinema abalou o processo tradicional da recriação artística, fundado desde a origem da humanidade sobre o recurso às matérias e técnicas intermediárias para representar, evocar, significar, mover: cores, mármore, notas, palavras, desenho, convenção, metáfora... A objetiva transparente e o registro do som nos entregaram o mundo tal como ele é, e transmitem o artefato interposto não como mediador do real, mas como artifício.
D) Reconhecimento da mise en scène e nas imagens como um propósito do trabalho cinematográfico e não mais encadernação decorativa de uma história. Esse conceito parece hoje digerido, em realidade esquecido, é importante destacar que ele foi malvisto na época que nós jogamos nossa quadra de ases[6]. No meu prefácio para Mise en Scène comme langage[7], eu sublinhei a equivalência da história das artes com a consciência lenta da primazia da matéria sobre o sujeito em poesia e em pintura (Mallarmé, Valéry, Malraux...)
(Michel Mourlet. “Survivant de l’âge d’ôr: Textes et entretiens sur le cinéma 1970-2020”. Paris: Les Éditions de Paris Max Chaleil, 2021, pp. 53-54. Traduzido por Pedro Vereza)
[1] NT: “l’amour du cinéma américain”. Foi o n. 54 da revista francesa de cinema CinèmAction, publicada no final de 1989.
[2] NT: Aqui Mourlet parece indicar simultaneamente pela palavra Cahiers, a palavra francesa para “revistas”, designando o sumo das revistas especializadas francesas de cinema, mas também especificamente a revista de cinema francesa Cahiers du Cinéma, fundada em 1951 por André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze, Joseph-Marie Lo Duca e Léonide Keigel, e que contou com colaboração do próprio Mourlet entre 1959 e 1960. A sentença, no francês, está escrita desse modo: “(...) modernité régressive des Cahiers devenus si bêtes, puis si pauvres, à force de se croire plus intelligents” (grifo de Mourlet). Dado essa ambiguidade, tanto no sentido quanto na própria escolha por grifar a palavra, decidimos manter o termo no original.
[3] NT: Aqui ele se refere ao crítico de cinema e diretor francês Bertrand Tavernier (1941-2021), que colaborou com Mourlet na revista Présence du Cinéma, revista que Mourlet foi Editor-Chefe entre 1960 e 1962
[4] NT: Mourlet se refere aqui à Michel Jean Ciment (1938-2023), crítico de cinema francês mais associado a revista de cinema Positif, do qual Ciment foi editor chefe de 1966 até o ano de sua morte.
[5] NT: No original: “(…) n’est autre que notre turbulent éléphant dans la porcelaine de la critique.” Aqui Mourlet usa uma expressão do francês, encurtada: “Un élephant dans un magasin de porcelaine” ou “elefante em uma loja de porcelanas”. Expressão que costuma se referir a pessoas desajeitadas, estabanadas e que causam estragos. No original Mourlet diz apenas “éléphant dans la porcelaine” em vez do usual “éléphant dans un magazine de porcelaine”, o que é possível no francês, mas não traduz bem para o português. Decidi manter a expressão em seu modo completo por uma questão de inteligibilidade.
[6] NT: “Carré d’as”. Expressão que se refere a sequência de quatro ases em um jogo de cartas. Se refere a controlar todos os ases do baralho em um jogo de cartas, em especial no Poker.
[7] NT: Aqui Mourlet se refere à edição ampliada e revista que ele fez para o seu mais célebre texto Sur un Art Ignoré (publicado na edição n. 98 da Cahiers du Cinéma), e acompanhado por outros textos, lançado na França em 1987, mas infelizmente ainda inédito no Brasil.