Red Line 7000: A Secreta Continuidade do mundo segundo Hawks
por Miguel Serqueira
Red Line 7000: a secreta continuidade do mundo segundo Hawks
Não é possível abordar Faixa Vermelha 7000 [Red Line 7000, EUA, Howard Hawks, 1965] a partir da perspectiva equivocada que o rotula como “obra menor” ou um “desvio crepuscular” de Howard Hawks, como o próprio Hawks, ao se deparar com o resultado do filme, pensara. Essa leitura não apenas trai a natureza do filme como ignora a profundidade com que Hawks continua a desenvolver os princípios formais e morais que estruturam toda a sua obra. Para compreendê-lo, é necessário abandonar o fetiche cronológico — que se apressa em ler o “último Hawks” como cansaço ou desatualização — e reencontrar o núcleo de coerência que faz de Red Line 7000 um exemplo refinadíssimo de um cinema que, longe de buscar renovação superficial, atinge aqui um ponto de cristalização abstrata, quase matemática, daquilo que sempre moveu seu autor: o comportamento humano medido pela ação e pelos dilemas morais do seu mundo, o grupo como centro de gravidade dramático, a ética do trabalho como fundamento de toda relação legítima entre pessoas - que se originam ou não dessa moção social.
Em Red Line 7000 tudo o que define o cinema de Hawks permanece ativo, mas obedece a uma lógica tão limpa e direta (mesmo que isso possa parecer redundância para Hawks), que é como se o cineasta levasse sua própria gramática a um grau de abstração inédito. O filme não se destaca como anomalia, mas como extensão lógica, como um novo desenho sobre a mesma partitura. É Hawks seguindo sua própria lógica e ainda consegue adicionar um elementarismo tão "sem controle", fazendo-o dialogar com diferentes "vertentes" do cinema - é como Bruno Andrade disse[1], é Hawks sendo classicista, não classicista e modernista ao mesmo tempo. Como em Paraíso Infernal [Only Angels Have Wings, EUA, Howard Hawks, 1939], Uma Aventura Na Martinica [To Have and Have Not, EUA, Howard Hawks, 1944], Onde Começa o Inferno [Rio Bravo, EUA, Howard Hawks, 1959] ou Hatari [EUA, Howard Hawks, 1962] o núcleo não está na intriga, mas na constelação de relações que se estabelecem entre pessoas colocadas diante do risco, da perda, do trabalho e da espera. Ainda que a discussão do herói hawksiano e sua moral - o filme começa já desestabilizando esse conceito - ainda é retilíneo em toda a base humanista de todos os outros filmes de Hawks; a aventura de conhecer a mais íntima das reações e o mais profundo sentimento dos personagens. Não que Hawks faça isso ser um mistério para o espectador, muito pelo contrário, tudo é extremamente claro e explícito, mas é pautado nesse humanismo que suas aventuras acontecem. É o que Lourcelles diz sobre Hawks em seu texto sobre Red Line 7000[2]: "Descrito como uma imagem corneliana de grandeza, generosidade e heroísmo cercada de perigos, seu trabalho não vale nada. Suas virtudes estão em outro lugar." Voltando a Red Line; cada personagem ocupa uma posição em um sistema relacional que se constrói por observação, convivência e ação; não há necessidade de motivações profundas ou traumas de superfície — o que importa é a conduta, o modo como cada um se comporta diante do outro e do mundo. A hierarquia dramática, como sempre em Hawks, é fluida, emergindo não da imposição de um protagonista central, mas da interação, da confiança que se sedimenta. A forma pela qual essas relações se desenvolvem, sem pressa, sem ênfase, mas com rigor — por meio do olhar, da ironia seca, da repetição de gestos —, é o que permite a Hawks continuar filmando, neste ponto já avançado da carreira, a mesma moral essencial de seus primeiros filmes: a de que as pessoas se revelam pelo que fazem, não pelo que dizem de si; e de que a verdadeira solidariedade não nasce da retórica, mas do respeito silencioso pelo outro. Nesse sentido, Red Line 7000
não é apenas “mais um” Hawks: é Hawks em estado de decantação, quase mineral, onde o estilo e a ética se tornaram inseparáveis da matéria mesma do filme.
A beleza do filme está precisamente em sua estrutura aparentemente rotativa e serial, que é na verdade uma composição musical em três movimentos, cada um centrado num trio de personagens. Hawks constrói essas variações com um domínio absoluto da progressão dramática: ele introduz os elementos com rapidez e discrição, coloca-os em tensão por meio de gestos e falas mínimas, e os resolve não por clímax emocionais, mas por reequilíbrios discretos, muitas vezes quase invisíveis. Aqui, como em O Rio Da Aventura [The Big Sky, EUA, Howard Hawks, 1952], a hierarquia dramática se constrói ao longo do filme, não vem dada de antemão. E isso é profundamente hawksiano: o valor de cada personagem se revela na prática, na maneira como ele lida com o risco, com a frustração, com os outros. Mesmo se tratando de um filme do Hawks, de quem se é falado sempre como sinônimo a "simplicidade" na encenação - o que substancialmente não é mentira -, talvez em Red Line seja onde toda essa rigorosidade surja como uma "complexidade" que se deixa transparecer justamente nos momentos que mais encantam em qualquer Hawks: as interações. Tudo se resolve no gesto justo, na ética do olhar, na complexidade do encanto entre esses personagens, na maneira como eles entram em cena ou se afastam sem barulho, como se, da mesma maneira, assim o fizessem nos laços românticos entre esses personagens. Não há redundância, não há sublinhado. É um pequeno enquadramento, uma câmera se afastando ou se aproximando. É um trabalho de proximidade e relação entre os personagens completamente diferente quando se fala de Hawks. É a materialização de um cinema completamente diferente de qualquer coisa que exista, cheio de camadas clássicas e modernas, e, mesmo que ainda existam alguns cineastas que "herdaram" Hawks, poucos ou nenhum herdaram parte disso.
Por mais que tudo isso diga algo significativo sobre o cinema de Hawks, não há nada mais hawksianismo do que compreender a "lógica perfeita" de sua decupagem, a colocação justa da câmera, a montagem que respeita a integridade do espaço e a continuidade dos afetos. O interior e o exterior — os boxes e a pista — se complementam como duas fases de um mesmo movimento: o primeiro, lugar da observação, da decisão contida, as relações pessoais; o segundo, lugar da prova, da ação pura - que é o que menciona Rivette[3]. Essa articulação é o coração do filme, justamente pelo segundo ser tão definidor para o que é o primeiro; os homens que competem insanamente nas pistas e guardam um amor de mulheres que compartilham anseios sobre esses amores. E Hawks a conduz com uma autoridade silenciosa, quase invisível, que revela o domínio absoluto do cineasta sobre seu material. Nada é gratuito. Tudo serve à economia geral da obra. Esse é o seu classicismo: não a adesão a uma forma codificada, mas a fidelidade a uma ética da forma.
Finalmente, é importante reconhecer o lirismo profundo — e por isso mesmo silencioso — que atravessa o filme. Hawks nunca foi um cineasta sentimental. Mas seus filmes sempre foram profundamente emocionais. A emoção nasce da convivência, da persistência, da dignidade com que os personagens sustentam seus vínculos mesmo quando tudo parece ameaçá-los. Em Red Line 7000, esse lirismo se manifesta sobretudo nos momentos em que o afeto não pode ser dito: nos olhares trocados entre corridas, nos silêncios entre um afastamento e uma reconciliação, na maneira como um personagem cuida do outro sem anunciar sua intenção. O amor, aqui, é sempre lateral, secundário, mas nunca irrelevante. Ele é o que humaniza a mecânica. Ele é o que dá sentido ao risco. E é isso que faz de Red Line 7000 um filme profundamente hawksiano, digno de figurar entre as grandes obras de um cineasta que jamais se traiu, que jamais cedeu ao espetáculo ou à moda, e que até o fim perseguiu com obstinação o que sempre lhe interessou: a clareza moral da ação, a beleza do gesto justo, a elegância de um cinema sem psicologismo, mas cheio de alma.
[1] Bruno Andrade. Letterboxd, 2013. Disponível em: https://letterboxd.com/timeistheking/film/red-line-7000/. Acesso em 23/04/2025
[2] Jacques Lourcelles. "Red Line 7000", Présence du Cinéma. n. 24-25, Outubro de 1967, pp. 94-95.
[3] Jacques Rivette. "Génie de Howard Hawks", Cahiers du Cinéma. n. 23, Maio de 1953, pp. 16-23.