Timbuktu, Jacques Torneur (1958)
por Ricardo Oliveira
TIMBUKTU, Jacques Tourneur (1958)
por Ricardo Oliveira
“The conquest of the earth, which mostly means the taking it away from those who have a different complexion or slightly flatter noses than ourselves, is not a pretty thing when you look into it too much. What redeems it is the idea only. An idea at the back of it; not a sentimental pretence but an idea; and an unselfish belief in the idea—something you can set up, and bow down before, and offer a sacrifice to. . .”
Joseph Conrad, Heart of Darkness[1]
“Tourneur’s films revolve around communications that are misunderstood or blocked…”
Chris Fujiwara, Jacques Tourneur[2]
ENREDO
Muito pouco se sabe sobre Mike Conway (Victor Mature) mesmo com o avanço da narrativa. Sabemos que está negociando com dois lados em guerra, e que quer sair de Timbuktu. Aventureiro, comerciante de armas, Conway é um estrangeiro até mesmo entre os colonos franceses; para os revoltosos tuareg, suas armas roubadas da legião estrangeira, nas vésperas da rendição francesa, são uma oportunidade para a vitória. No início do filme, um texto anuncia que naquele universo, esses bandidos e conspiradores do deserto, liderados pela face perversa de Suleiman (Paul Wexler), a quem o signo da cicatriz divide ao meio o rosto, seu retrato vilanesco, serão o principal desequilíbrio à ordem estabelecida. Conway junta-se à caravana do exército francês do Coronel Charles Dufort (George Dolenz) até Bou Djebeha. Dufort resgata Conway de uma emboscada. Juntos, ele e seus homens escoltam Natalie (Yvonne De Carlo) e Jeanne Marat (Marcia Henderson). Ele mente e consegue esconder as armas que está carregando. Diz aos franceses que são máquinas de costura.
A universalização da forma mercadoria não poderia ser diferente para homens e mulheres, de modos distintos. Sujeito ao soldo, Conway passa a ocupar e manipular o palco das intrigas palacianas entre o emir (John Dehner) e o coronel, enquanto se vê em um dilema sobre qual lado tomar na guerra. Suleiman logo dá um jeito de morrer como prova de falsa lealdade ao coronel. Natalie, usada como uma isca (mercadoria para o mercador), se apaixona pelo seu alvo. A qualidade de todos os objetos em cena é sua fungibilidade: circulam entre as elipses, como os medalhões, e os figurantes de litham (um véu típico da vestimenta dos homens da região). Dufort, entre outras coisas, engendra a prostituição da esposa e lida com morte contínua dos seus soldados. Os conflitos do administrador colonial fazem dele próprio um refém da cortina de informação.
Em um primeiro momento, um filme que se delineia narrativamente em torno de um levante histórico, passa a ser sobre uma realidade isolada, perdida no tempo. Antigas cidades perdidas surgem e somem com o vento do deserto. Nos impressionamos cada vez que há alguma coisa viva em cena, por mais cambaleante… Nessa teia de disfarces e enganações, o líder popular Mohomet Adani (Leonard Mudie) é mantido como refém pelo emir, e só ele é capaz de influenciar a decisão da revolta. Conway consegue enganar o emir e seus soldados fingindo que está fazendo sexo com Natalie em uma sala escura, e esconde Mohomet em uma carruagem, após receber um mapa de Natalie, entregue a ela por Dufort. Os homens do emir ocupam a cidade e capturam Conway, mas Dufort resgata o interesse amoroso da sua esposa, e ambos tomam a cidade. Logo em seguida, Dufort é morto a tiros de metralhadora. Mohomet discursa para a população local, revelando a conspiração do emir, então morto por Conway com as metralhadoras contrabandeadas. Timbuktu retorna ao domínio francês. Conway e Natalie desaparecem no horizonte.
O FILME
“Quem entende de poesia”[3], diz Benedetto Croce, “vai diretamente àquele coração poético e percebe suas pulsações; e onde as pulsações se calam nega que haja poesia, não importando quais e quantas sejam as outras coisas que ocupam seu lugar, acumuladas na obra, por mais que sejam apreciáveis por virtuosidade e sabedoria, por nobreza de entendimentos, por agilidade de engenho, por aprazibilidade de efeitos”. Timbuktu se destaca na trajetória de Tourneur, e em sua época, por ir diretamente ao coração poético do filme; quando a irrealidade se faz imagem e som. Pouco ou nenhum espaço para simbolismos baratos, o artificialismo que seu produtor parecia exigir, pelo onírico (autores como Fujiwara atribuem muito isso à sua obra. Não poderia ser mais oposto a Tourneur), dos elementos mais literários. Timbuktu, como Biette descreveu perfeitamente, “filma valores (propostos por Hollywood, ou qualquer outro sistema de representação firmemente enraizado no social) como coisas”[4]. Não somos apresentados a esses valores ingratos de modo a aprovar ou desaprovar – seja ele o pacifismo pró-francês do líder local, a sede de poder do emir, a neutralidade cínica de Conway etc. – mas a conhecer a passividade característica das suas frivolidades, mesmo na ação. Suas metamorfoses repentinas, mudanças que não se explicam. A mise-en-scène continuamente enquadra todos como veículos em luta, forças que persistem no vácuo.
Para além daquilo que é da ordem do inefável, grandes cineastas figuram também uma intencionalidade, que individua cada um dos seus filmes. A obra de Tourneur toma os espólios do gênero hollywoodiano, seus temas pré-estabelecidos, representações, sua existência no seio do sistema de estúdio, sua circulação comercial massificada e reapresenta aos espectadores como aparências insólitas; ruínas do que um dia foram imagens mitológicas. Lourcelles enfatizou essa dimensão da obra em seu Notas sobre Jacques Tourneur[5] e nos textos Dictionnaire du Cinéma, em especial o verbete que aborda o filme desta crítica[6]. Alguns pesadelos, que inicialmente se mostram encarnações do mal absoluto em exemplos específicos, são na verdade inofensivos. O contrário também acontece com lugares inteiros, mundos inteiros, cuja beleza inicial nos engana. Em meio a essa disputa por controle, as promessas de felicidade são sempre filmadas como parciais. Sempre em relação a um horror indescritível, como a justaposição entre a cabeça decepada, uma rosa, e a reação impassível de Dufort. Na cena seguinte, encadeada em um ritmo fluído de ações de plano e contraplano, Natalie cavalga solitária no deserto rumo ao breu total, em um ato de desespero.
A desorientação do espectador em relação ao contexto político, humano e prático em que é atirado, ao fim e ao cabo, atinge uma certeza absoluta da sua precariedade. Conway vive uma recusa violenta da miragem da vitória. Não sabemos se a abjeção do refém que causa o conflito é o principal motivo para sua intervenção direta na guerra, ou o seu desejo por Natalie. Tudo orbita a sua eterna virtualidade, que permite a aniquilação do inimigo na guerra ser muito menos importante do que antecipar a sua debilidade.
Que viria a ser esse elemento colocado em dúvida? Cada visão de mundo implicada (enaltecimento de luta, ou da resignação) é matéria prima para a articulação. Esses objetos ideológicos, analisados como meios em contraponto, buscando uma verdade eterna, podemos chamar verdadeiramente de política. Uma cena desvela no olhar a realidade que não apreendemos no cotidiano, encoberta pelo véu da circulação, e outras persistem no engano. Se tornar um estrangeiro em um país estranho, onde a justiça e a piedade perderam seu significado, é perder-se na incerteza, sem a promessa de um reencontro.
Somos apresentados a perspectivas, observações, experiências: a infantilidade dos nativos, o egoísmo de Conway, sobre encontrar-se perdido e insatisfeito com o deserto. Suspensos pela ação, descobrimo-nos receptáculos de enfeites, sujeitos vestidos da máscara moral que a cultura e a sociabilidade exigem, mas tão avessa à reflexão estética. Mas assim também é preciso vestir essa máscara. É preciso se ajustar à dominação, aceitar o desumano, tomar para si o risco. Nessa toada, o cineasta está sempre um passo à frente do seu espectador. Seu controle da cadeia de eventos mostra processos e contrapontos, menos dramáticos e mais investigativos, em que somos envolvidos. Esse trabalho com a representação, por recusar qualquer princípio psicológico no drama, permite, ao fim e ao cabo, romper com as convenções recicladas dos arquétipos da indústria, e devolve aos signos sua visão, elevando-os da matéria fílmica ao crivo da consciência. Como mais, senão através do cinema?
Timbuktu é o ponto de inflexão na carreira do seu autor, ao longo do qual Tourneur enfrenta em estilo clássico a realização do seu próprio modernismo. É impossível não perceber como decadência dos cortes de gastos e a dificuldade no que tange recursos significou para Tourneur uma compreensão ligeiramente diferente da sua própria obra, motivo pelo qual odiou os seus últimos filmes. Passar de um realizador de filmes B cada vez mais para as franjas do sistema hollywoodiano isolou consideravelmente o cineasta, mas não o autor. O papel da personagem interpretada por Mature descende diretamente dos aventureiros de filmes como Um Punhado de Bravos [Objective, Burma! EUA, Raoul Walsh, 1945], de guerreiros deixados para trás. É um dos poucos filmes dessa época em que se destacam os cenários do filme, figurinos e props com uma articulação própria na mise-en-scéne, um trabalho de valorização das suas linhas e relevo dos medalhões e armas, cujo fluxo seguimos ao longo da narrativa. Isto é, como veremos abaixo, é parte constitutiva do interesse de Tourneur. Cecil B. DeMille, com a mesma fluência, mas com um interesse transcendente, é o mais próximo dele nesse sentido.
A obra de Tourneur provoca aqueles espectadores acostumados aos filmes de gênero contemporâneos, em que cenas saídas de manuais de roteiro operam cuspindo despoticamente as “motivações” dos seus protagonistas por um funil, sem lugar para ambiguidade ou negação. Aqueles mais suscetíveis ao peso da desatenção podem até mesmo criar aversão ao ponto de vista colonialista, e não só isso como seu triunfo no fim da narrativa (apesar da promessa de Mohomet). A dramaturgia moderna afirma seus slogans por repetições. Nenhum papel na narrativa é mais que apetrecho feito para passar uma mensagem, que o autor considere a mais alinhada ao seu oportunismo.
Na crítica, palavras vazias como “humanismo”, e frases que poderiam ser resultado do casamento idiota entre jornalismo e embalagem de chá de camomila, como “um filme que toca profundamente as nossas vidas” ou “experiência tocante e envolvente.” Dos sintomas desse casamento, que Luiz Carlos Oliveira Jr. descreveu muito bem[7], talvez o que mais nos toque esse texto seja a redução de Tourneur a uma espécie de aficionado pelo preto e branco com um ótimo olho para sombras, ou como um grande inovador do gênero no quesito de tensão construída pelo que está além do plano, como se muitos filmes do Tourneur também não estivessem carregados de grandes cenas feitas às claras, e também como se não fossem protagonizadas justamente pelo que está mais evidente no plano em relação ao que está fora dele.
Assistindo Choque de Ódios [Wichita, EUA, Jacques Tourneur, 1955], é natural chegar ao final do filme com um certo ceticismo, quando toda ação que ocorre diante dos nossos olhos se assemelha mais a um sopro. Uma divisão de situações muito bem delimitadas envolvendo o grupo de vaqueiros bandidos, e a lei personificada em Wyatt Earp (Joel McCrea), como versões dramáticas de sketches, em que irrompem tragédias incômodas. Nesse formato, as variações e detalhes teimosos de Earp nos conduzem das ideias e mitos (incluindo a ideia do filme: um caso isolado na vida da lenda do oeste) de volta à incerteza.
Por exemplo, a construção do romance descende da gentileza e da paixão de Laurie (Vera Miles) frente à resignação daquele forasteiro, ao mais sombrio: a morte da mãe. Em momentos como esses a controversa dualidade de Earp é sugerida. Um romance composto por cenas curtíssimas e quietas, pequenos momentos glaciais decorados de uma simples cortesia. Na penúltima cena em que ambos estão juntos, ao lado do espelho, Laurie, que inicialmente parecia servir como uma perspectiva que poderia nos aproximar de Earp, também demonstra estar um tanto ausente de si mesma.
O que vemos são figuras imóveis entalhadas em mármore; sentimos o peso e a largura dos corpos. O panning vagaroso em Scope, o ritmo das falas, as cores pálidas em technicolor... Poderiam ser evocados para explicar o centro de gravidade que ordena esse plano, mas ainda seria insuficiente, assim como seria insuficiente sobre Timbuktu falar do trabalho de close-up, abertura do ângulo, iluminação, os mais metódicos da carreira de Tourneur. Poucas obras de arte atingiram uma aproximação tão grande ao recuar do intento da cena. Destoar completamente do resto do filme após uma longa construção romântica, sem nenhuma promessa de consumação. Ao contrário, Earp declara que os assassinatos arbitrários, que são exceção ao seu estado de lei, jamais poderiam acabar. Ao final do casamento, ambos viajam em uma carruagem enfeitada para a cidade seguinte. Mas ao contrário da sátira, Tourneur atinge em Choques de Ódios, como em Timbuktu, uma irradiação pura, como uma luminária acesa.
O encarceramento da dramaturgia contemporânea, que, ao contrário do trabalho que Tourneur conduzia junto aos seus colegas, tem como mecanismo hegemônico um naturalismo demente, e, como resultado final, a falsificação consciente de todas as bases do cinema clássico, e todos os seus desdobramentos, quando a petulância de um autor prestigiado em assumir a própria crise estética (costume desde a geração dos anos 70), e não só isso, mas a crise estética da terra infértil que é o mercado Hollywoodiano com apologismo e estruturas dramáticas idênticas que nada acrescem em filmes posteriores, é aplaudida em grande estilo por todos os críticos e o público. Uma inventividade tão grande no atual cenário do cinema americano e europeu (que se assemelham mais a um domínio total da televisão de prestígio) seria motivo de sabotagem, como foram as carreira de Dwan, Carpenter, Ulmer, Cohen, que da sua própria maneira foram além do consenso silencioso no que diz respeito não só à dramaturgia, mas à intenção dos seus pares, profundamente comprometida com o debate público, a publicidade, até mesmo o lucro. Há nesses cineastas uma vanguarda que precisa ser resgatada.
[1] Joseph Conrad. “Heart of Darkness”. New York: Barnes & Noble Classics, 2003, p. 75.
[2] Chris Fujiwara. The Cinema of Nightfall. Jefferson: McFarland & Company, Inc., 1998, p. 17.
[3] Benedetto Croce. Breviário de Estética Aesthetica in Nuce. São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 157
[4] Jean-Claude Biette. Cahiers du Cinéma, no. 281, 1977, p. 40.
[5] Jacques Lourcelles. Notas Sobre Jacques Tourneur. Présence du cinéma, no. 22-23, 1966.
[6] Jacques Lourcelles. Dictionnaire du Cinéma Les Films. Éditions Robert Laffont, 1992.
[7] Luiz Carlos Oliveira Jr. “A Publicidade Venceu.” Disponível em: http://www.contracampo.com.br/92/pgpublicidadevenceu.html